ARTIGOS

O Brasil e a difícil constituição do espaço de convivência das diferenças

 Verônica Maria Mapurunga de Miranda*

Olhando a bandeira brasileira com todas as suas figuras geométricas - quadrado, losango e círculo - fico imaginando que essa é uma bandeira que sugere uma realização em todos os sentidos. E nesse caso poderíamos dizer que o quadrado é igual ao losango, que por sua vez é igual ao círculo. Nós brasileiros sempre usamos mais o verde e amarelo do quadrado e losango, e o azul do centro, do círculo, sempre foi a mais preterida das cores da bandeira brasileira. Formada com as cores da bandeira portuguesa, a bandeira brasileira tem também uma interpretação romântica de suas cores. Essa interpretação provavelmente mais brasileira. Mas, agora, talvez tenhamos que ir de cara ao centro, ao azul, que na designação romântica da bandeira seria o céu. E por que não oceano, do inconsciente coletivo, onde está o coração da bandeira? E por que não irmos agora ao coração do Brasil?

Antes, porém, pensemos, que esse e outros símbolos nacionais foram durante muito tempo a expressão do ufanismo ou de uma identidade nacional construída de cima para baixo, imposta. Quando falamos de construção de identidade nacional sempre corremos o risco de cair na supressão das várias facetas que a compõem, no dirigismo, na folclorização, na imposição daquilo que se quer e que se acredita que seja a identidade nacional, a partir da hegemonia de classes, de poucos segmentos da sociedade e da cultura, negando-se o amplo leque das variadas expressões culturais e sociais. Assim tivemos os populismos, os nazismos, fascismos e ditaduras militares todos reivindicando uma identidade nacional, e impondo símbolos nacionais à cultura e população. Os verdadeiros símbolos são os espontâneos e não os impostos. 

Comecemos questionando que ser brasileiro não é necessariamente ser nacional. Principalmente se a nação não está verdadeiramente constituída. E esse parece ser um assunto antigo. Por que falar de constituição de nação quando o assunto do dia é a república planetária, quebra das fronteiras entre países e nações, mundo global e cada vez mais tomado pela racionalidade econômica do capital mundializado? E eu respondo grosseiramente (grosso modo) que a república planetária deverá ser uma república de nações, e que a forma como nos constituímos historicamente no Brasil nos tornou dolorosamente divididos como povo. E essa divisão não está  espelhada somente nas nossas instituições, está também no mais profundo de nossa alma coletiva. Não podemos ir aos pedaços para uma república planetária. Não suportaremos o repuxo.Ou nos constituímos como nação ou nos esfacelaremos nas várias identidades que selarão o mundo novo.

Para buscarmos essa identidade verdadeira e necessária temos que deixá-la emergir. Aquilo que sempre pareceu incômodo ao Estado, aquilo que sempre pareceu incômodo às classe dominantes terá que emergir agora - de fato isto já está começando a acontecer - para que possa se constituir essa identidade através de um espaço de convivência entre capital e trabalho, entre Estado e sociedade civil , entre união e estados da federação e regiões, e entre as diversas etnias, religiões, expressões políticas e culturais. Os fossos de diferenças entre todos esses aspectos que causam inúmeros problemas para a população brasileira terão que se transformar em pontes de entendimento, diálogo, reconhecimento, para que possamos constituir um espaço central de convivência de todas  essas diferenças.

Não precisaremos fazer aqui um retrospecto da história do Brasil e do desenvolvimento dos vários aspectos econômicos, políticos, culturais, sobre os quais exaustivamente se debruçaram historiadores, sociólogos, antropólogos, economistas, cientistas políticos e muitos outros pensadores trazendo as contribuições necessárias, apesar de algumas vezes fragmentárias, sobre essas questões. Sem dúvida são todas importantes para a compreensão dessa totalidade - mesmo que seja totalidade virtual - que é o Brasil. Mas, precisamos nos debruçar agora sobre as fissuras existentes desde sua formação, que foram molduradas de um lado pela oposição entre Estado e sociedade civil e de outro lado pela oposição entre capital e trabalho. Todas as outras diferenças entre etnias, religiões, expressões políticas e culturais e regiões estão permeadas por essa moldura.

Abaixo um mapa que não tem pretensão de ser estático, nem de ser estrutura,  nem de ser modelo, posto que está em permanente  movimento. Apenas uma forma didática, e por imagens, de se expressar. 

 

O Centro - Gráfico por Veronica M.Mapurunga de Miranda-18/05/2003

O Centro - Gráfico por Veronica Maria Mapurunga de Miranda-18/05/2003

 

 Estamos nesse oceano que aparentemente tem uma moldura e onde o permanente movimento deveria ir em direção ao centro, ao encontro. Oposições que precisam encontrar um denominador comum. Essa é a tarefa difícil do momento histórico que vivemos. De criar um ponto central de convergência, de onde emergirá um novo Brasil.

Para começar com essa moldura, falemos sobre a inexistência do espaço de diálogo entre sociedade civil e Estado e entre capital e trabalho. No Brasil não podemos falar de um pólo sem o outro, já que o Estado sempre foi o sustentáculo do capital. A ausência desse espaço de diálogo sempre nos levou a viver entre dois pólos: a ameaça da ditadura para os setores de esquerda e a ameaça de revolução para os setores de direita. Em conseqüência disso também, esquerda e direita no país nunca assumiram realmente seus papéis, um fazer política sob permanente ameaça de um perigo da polarização. A direita e esquerda no Brasil sempre tenderam a ser de centro, ainda que um mascarado centro. A falta desse verdadeiro centro colocou e coloca sempre a democracia brasileira em risco. É sintomático no Brasil que ninguém goste de ser classificado como de direita, ou ainda ser classificado de radical. Esse medo que permeia o jogo político espreita sempre o perigo da polarização, que é justamente causado pelo fato de nunca haver se constituído um espaço de convivência das diferenças, de direitos, de denominador comum, que caracterizam uma democracia verdadeira.

O caráter extremamente impositivo do Estado e das classes dominantes no país nunca favoreceu a abertura desse espaço. E fazê-lo agora movido pelo desejo da população que elegeu um presidente representante das classes trabalhadoras e proposições políticas genuinamente de esquerda, com o propósito de realizar um pacto social entre capital e trabalho, significa dar espaço para as manifestações das classe trabalhadoras e para a sociedade civil, que estão à margem do Estado. Esse espaço de diálogo tem que ser criado, talvez o primeiro espaço realmente público do Brasil.

A sociedade civil, que se expressa principalmente nos movimentos sociais do país, se constituiu aos "trancos e barrancos", ou praticamente não se constituiu, já que esses movimentos crescem completamente à margem do Estado. Ora o Estado quer anexá-los, ora o Estado quer extingui-los, colocando-os como ameaças à governabilidade. O Estado encarcerado nele mesmo jamais poderá mudar, necessita para isso da criação desse espaço. A tentação de anexar os movimentos sociais ao Estado deverá ocorrer ainda, uma vez que há um círculo vicioso e de dominação criado e recriado pelo Estado e elites governantes ao longo de nossa história. A única forma de criar esse espaço público e necessário à democracia é criar mecanismos nas várias instâncias do Estado, para que a sociedade civil, na forma de movimentos sociais e representantes da cidadania, possa estabelecer um diálogo com o Estado sem perder sua autonomia. Atualmente ainda temos conselhos estaduais, municipais, federais, que pecam por uma representação que não existe. Via de regra os representantes da sociedade civil desses conselhos estão lá porque concordam com as políticas do Estado e não as questionam. Isso não é constituição de espaço público. Isso é somente a aparência, que esconde as verdadeiras intenções do Estado - não abrir mão de suas políticas, privilégios e regalias das classes dominantes.

Se é verdade que queremos constituir esse espaço de centro e de diálogo é necessário estarmos dispostos a deixar aflorar as críticas e falas daquelas vozes não "costumeiramente" ouvidas - dos movimentos sociais, dos trabalhadores e cidadãos comuns - e se criar o espaço para esse encontro. Só é possível criar um denominador comum no país e na nação, se pela primeira vez no país, os trabalhadores e a sociedade civil puderem compor um centro de diálogos e decisões, com aqueles que já participam há muito tempo - classes dominantes e Estado. Isso significa confronto de idéias diferentes, incômodo e mudanças de estruturas. Não podemos chegar em um terceiro ponto, sem passar pelo reconhecimento do segundo.Teremos que resgatar os movimentos sociais, das sombras ou do limbo onde ficaram, tratados de forma marginal, para esse centro de diálogo e participação. Vivemos um momento histórico em que essas mudanças estão assinaladas e movidas pelo desejo da população. A não realização disso custará muito caro para todos. Estamos em um mesmo barco.

Há momentos na história em que qualquer intenção de controle dos processos é pretensão descabida.O processo é maior do que todos nós juntos. Um operário não foi eleito presidente, neste país, à toa. As forças que movem esse processo são poderosas. Melhor do que querer controlá-las é tentar acolhê-las e compreendê-las.Todos somos responsáveis por esse processo, em diferentes graus e dentro das possibilidades de cada um. Podemos concluir com os compositores Pablo Milanés e Chico Buarque que cantam sobre esses processos históricos.

 

El nacimiento de un mundo
Se aplazó por un momento
Fue un breve lapso del tiempo
Del universo un segundo

 Sin embargo parecia
Que todo se iba a acabar
Con la distancia mortal
Que separó nuestras vidas

 Realizavan la labor
De desunir nossas mãos
E fazer com que os irmãos
Se mirassem com temor

 Cuando passaron los años
Se acumularam rancores
Se olvidaram os amores
Parecíamos extraños

 Que distância tão sofrida
Que mundo tão separado
Jamás se hubiera encontrado
Sin aportar nuevas vidas

E quem garante que a História
É carroça abandonada
Numa beira de estrada
Ou numa estação inglória

 A História é um carro alegre
Cheio de um povo contente
Que atropela indiferente
Todo aquele que a negue

 É um trem riscando trilhos
Abrindo novos espaços
Acenando muitos braços
Balançando nossos filhos

Lo que brilla con luz propia
Nadie lo puede apagar
Su brillo puede alcanzar
La oscuridad de otras costas

 Quem vai impedir que a chama
Saia iluminando o cenário
Saia incendiando o plenário
Saia inventando outra trama

 Quem vai evitar que os ventos
Batam portas mal fechadas
Revirem terras mal socadas
E espalhem nossos lamentos

E enfim quem paga o pesar
Do tempo que se gastou
De las vidas que costó
De las que puede costar

Já foi lançada uma estrela
Pra quem souber enxergar
Pra quem quiser alcançar
E andar abraçado nela

(Canción por la Unidad de Latino América

Pablo Milanes e Chico Buarque)

 

Texto publicado também em Artesanias-de Verônica Miranda -www.veronicammiranda.com.br
Data: 18/05/2003

*Verônica Maria Mapurunga de Miranda, historiadora, artista plástica e membro do Centro de Estudos e Pesquisas Agrárias do Ceará - CEPAC.

 

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